sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Diálogo entre um sábio e um preto-velho - por Ronaldo Figueira



Certo dia, um filósofo adentra a uma tenda de umbanda e senta-se no banquinho de um preto velho. Sua intenção era questionar, investigar; enfim, experimentar. Ao se sentar, o preto velho já sabia o que ele queria, mas mesmo assim saudou-o gentilmente e perguntou em que poderia ajudar.

O filósofo respondeu:
Meu preto velho, na era da biotecnologia vemos os cientistas avançarem cada vez mais nas
pesquisas referentes à manipulação do material genético humano. Além disso, estamos na era do multiculturalismo, de forma tal que a diversidade, inclusive no sentido intelectual, se faz cada vez mais presente.

Pergunto eu: _ o que pode um preto velho dizer sobre assuntos de tamanha complexidade?

Preto Velho, com toda sua calma, respondeu gentilmente ao filósofo:

Misin fio, vós suncê (Sic) tem palavra bonita na boca, por causa de que tu és homem letrado (Sic). Nego véio cá, num estudou nem escrevinhou essas coisa. Mas daqui do meu cantinho, aonde os ventos de Aruanda tocam em meus ouvidos, recebo as notícias que vem da Terra. Vejo também com meus próprios olhos e presencio as lágrimas e sorrisos que brotam como flores e espinhos no âmago de meus filhos.
Vou dizer a vós suncê uma coisa. Esse bicho chamado “biotecnologia”, eu sei muito bem como funciona. Misin fio, [bio] vem do grego “bios” = vida. ”Téchne” e “Logos” também vem do grego, fio. Logo, biotecnologia é o conhecimento sobre as práticas (manipulação) referentes à vida. Assim sendo, nego véio é a favor de tudo que respeita a vida e que é usado para o bem. O bem, não só de si mesmo, mas da humanidade. Uma faca pode ser uma ferramenta de cozinha e ajudar a preparar um alimento. No entanto, a mesma faca pode ser uma arma a machucar alguém. Não é a ferramenta, mas sim o que se faz com ela que torna perigosa a humanidade.

Pasmo, o intelectual não sabia o que dizer, tamanha sua surpresa sobre tão sábias palavras. E não só isto, o conhecimento até sobre a origem das expressões que vem do grego, aquela humilde entidade possuía. Por alguns segundos sentiu um misto de inveja e indignação, uma vez que pensou ser mais conhecedor sobre as coisas da vida que o Preto Velho. Daí então indagou:

Você acha que suas opiniões podem superar a luz da ciência?

Este, respondeu:

Fio, o que nego véio fala, nego véio comprova, pois este nego vivenciou. Caminhou na terra que vós suncê pisa hoje. Sorriu, chorou, se emocionou, amou. Conviveu com homens de bem e também com homens do mal. Fez suas escolhas e por isso é hoje um espírito guia. E só pude aqui chegar porque acertei na maioria das escolhas que fiz. Naquelas em que não acertei, tive que vivenciar novamente, até aprender. Ass im como vós, na Terra. Quanto aos estudos (risos), esse nego véio aqui não frequentou escola na última encarnação. Mas, das muitas encarnações que tive, eu estudei, me formei e, em algumas delas me doutorei. A medicina chinesa, a filosofia grega, a sabedoria hindu; tudo isso fez parte da minha evolução. Da matemática egípcia até os estudos astronômicos de Galileu pude aprender.

E depois de aprender tudo isso, sabe qual o maior ensinamento que obtive misin fio?!

A ter h –u- m- i- l- d- a- d- e.

Por isto, doutor, vós me vês na aparência de um velho escravo brasileiro,
semeador das raízes deste lindo país chamado Brasil, terra da diversidade, da multi culturalidade.
Que cada um formule a sua moral da história.
Porém, questione seus conhecimentos e veja se estão alinhados com os propósitos de simplicidade.
Pois sem ela, não se faz jus a benção do saber.

Autor: Ronaldo Figueira http://9misticos.worpress.com

sábado, 11 de agosto de 2012

Homenagem aos pais - por Douglas Fersan

Quando eu era pequeno e tinha pesadelos à noite, eu chamava por ele. Como um super-herói infalível ele aparecia para me acudir. Hoje me sinto um herói quando salvo meu filho dos sonhos ruins. Claro que não quero que ele tenha pesadelos, mas é com certo orgulho que vou ao seu socorro.

Eu ficava admirado com a sua habilidade em serrar a madeira, martelar os pregos, dar formas úteis a pedaços de madeira e pintar a parede, que de embolorada ganhava uma cor bonita. Hoje, com orgulho, vejo meu filho admirando meus trabalhos manuais e pequenos consertos domésticos, que nem saem tão perfeitos assim, mas que aos seus olhos pueris são grandes feitos.

Eu não entendia como ele conseguia trabalhar tantas horas seguidas e ainda fazer uns “extras” nos finais de semana. Às vezes até me revoltava. Como ele se atrevia a trabalhar tanto? Não percebia que a gente queria a companhia dele? Hoje eu trabalho muito, talvez menos do que deveria, para dar um pouco de conforto àquele pequeno que eu amo tanto. Espero que um dia ele compreenda minha ausência.

Havia momentos também em que eu tinha raiva. Por que a vontade dele tinha que imperar? Por que ele tinha que me pedir um copo de água bem no melhor momento do desenho animado? Hoje eu tenho sede e nem sempre percebo que às vezes abuso da minha autoridade. Que tirano eu sou.

Houve um momento eu que me revoltei profundamente. Por que não podia deixar o cabelo crescer, usar brinco, fazer tatuagem? Que droga, eu era jovem, por que um velho ranzinza queria me impedir de viver os melhores momentos da minha juventude? Hoje eu não entendo direito as ideias desses jovens e quero a todo custo proteger o meu menino daquelas coisas que eu não consigo entender. Acho que estou ficando velho e meus neurônios não conseguem compreender a lógica das novas atitudes. Podem me chamar de careta se quiserem.

Pior foi quando tive que crescer repentinamente e inverter os papéis. Por ironia do destino eu tive que carregá-lo no colo, dar banho, colocar remédio na boca. Por fim o deitei em seu último berço e o devolvi a Deus. O mesmo Deus que um dia me deu a ele. Tudo tem um propósito, acho que Deus me deu a ele e ele a mim porque sabia que um dia ele cuidaria de mim e noutro dia eu cuidaria dele. Será que um dia será preciso meu menino cuidar de mim, zelar pelo meu sono e me deitar em meu último berço?

Hoje eu entendo tanta coisa que eu não entendia e reclamava. Entendo a sua caretice, a sua implicância, a sua rabugice. Tudo isso era a forma que ele tinha de traduzir em ações o seu maior sentimento: o amor.

Hoje eu queria tanto tê-lo aqui para um abraço, ainda que breve. Mas compenso essa ausência abraçando meu filho, afinal nada acontece por acaso. Uns vão, outros vêm. Outros não podem ser abraçados, mas outros estão aqui a nos chamar nas horas do pesadelo, para a brincadeira chata (para a qual nem sempre temos paciência), para levar umas broncas, para pedir ajuda na lição de casa ou simplesmente para serem amados. É o ciclo da vida, infinito e infalível. Apaixonante...

Que todos os pais, presentes e ausentes, se sintam abraçados. Não faz mal que essa data seja apenas um comércio, como todos sabem. Ela serve também para que alguns sentimentos não caiam no esquecimento.

Um abraço especial aos meus dois pais, Sergio, que me gerou, salvou dos pesadelos e me criou, e Edmilson, que convivi por menos tempo que eu gostaria, mas que não foi apenas um sogro, isso qualquer um pode ser, foi o pai postiço que me abraçou quando o meu biológico já não vivia mais entre nós.

Douglas Fersan

11/08/2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

História de um preto velho - por Douglas Fersan


Tudo começou na pequena Paranapiacaba, uma vila pitoresca, com arquitetura e clima (leia-se neblina) que lembra as cidades inglesas do século XIX e destinada à moradia dos trabalhadores da Rede Ferroviária Federal. As casas – algumas mais simples (onde moravam os trabalhadores mais humildes), outras mais requintadas (que abrigavam os engenheiros da ferrovia, os verdadeiros mandatários da empresa) – eram de madeira, pintadas de um tom entre o vermelho e o marrom, enquanto as de alvenaria, mais simples, eram pintadas de cal com um pigmento amarelo. Parece que esses detalhes imprimiam um aspecto ainda mais melancólico ao local.

Mas a casa onde dona Lidia morava não se encaixava em nenhum desses quesitos. Era uma casa extremamente humilde, de madeira, já bem úmida e surrada pelo tempo, a última casa da Rua Antônio Olinto abrigava a boa senhora, o marido e o casal de filhos. Os fundos do quintal davam para a mata fechada, que era bela, mas trazia alguns problemas, tais como a invasão de animais indesejados (cobras, morcegos, sapos), além de causar uma sensação de insegurança bastante justificável – tipos suspeitos costumavam se esgueirar por aquele local, sabe-se lá com qual finalidade. Tudo isso deixava dona Lidia apreensiva, pois seu marido, seu Sergio, saía para trabalhar antes do amanhecer e só voltava ao cair da tarde. Isso a fazia sentir-se refém da situação, junto aos filhos, durante todo o dia.

Em uma triste ocasião, um vizinho maldoso tentou arrastar a filha do casal para o matagal, com as piores intenções. Só não conseguiu seu intento porque outros moradores perceberam o movimento e agiram a tempo.

A vila era pequena e existiam algumas casas, melhor localizadas, que estavam desocupadas. Dona Lidia sempre pedia ao marido que solicitasse junto à sua chefia uma outra moradia, mas ele sempre retornava dizendo que o pedido havia sido negado.

Numa atitude de desespero, sem que o marido soubesse, ela pegou os dois filhos e foi São Paulo, tentar conversar com o superintendente da RFFSA. Após horas de cansativa espera foi atendida. O engenheiro a recebeu bem, ouviu a sua história, mas cordialmente disse que não atenderia o seu pedido. Explicou que seu Sergio era um excelente profissional e dentro da empresa somente ele dominava a técnica de desenhar manualmente (naquela época era assim) as letras que identificavam os vagões. No entanto, por ser consciente disso, era um tanto abusado em seu comportamento. Desrespeitava a hierarquia da empresa, não cumpria corretamente seu horário de trabalho, brigava, discutia com os superiores, enfim, era bom no que fazia, mas não era merecedor de privilégios devido ao mau comportamento.

Dona Lidia foi embora arrasada, deprimida. Precisava sair daquela casa a qualquer custo. Sentia um nó na garganta, mas segurou o choro para não abalar as crianças. Resolveu então visitar uma cunhada que morava ali perto, a fim de desabafar um pouco.

Chegando lá, falou sobre sua angústia e a cunhada, percebendo que ela não estava bem, convidou-a a ir até uma vizinha que era benzedeira. Lá chegando foram prontamente atendidas e a senhora incorporou uma entidade que se identificou como o preto velho Pai João Benedito. O bom espírito deu um passe em dona Lidia e seus filhos e, depois de falar palavras de conforto, disse:

_A fia pode ficar sossegada, esse preto velho vai ajudar a fia a conseguir o que precisa.

Dona Lidia voltou para casa mais leve, já conformada em ter que viver naquela casa velha, úmida e sem segurança. Mas ao menos sentia que estava protegida espiritualmente.

Algum tempo se passou e a conversa com o preto velho já estava caindo no esquecimento, afinal, como um espírito de um escravo poderia interferir na mudança de uma casa? O negócio era viver a vida, seguindo em frente e aprender a conviver com os sapos (bicho que particularmente dona Lidia tinha verdadeira fobia), cobras e outros animais repugnantes, além do constante medo por estar à mercê de um invasor que viesse pelo matagal.

Uma noite, seu Sergio adormeceu assistindo à TV junto com a filha no sofá da sala. Dona Lidia cansada do trabalho diário, foi para a cama e colocou o filho mais novo na cama (a casa era tão pequena que todos dormiam no mesmo quarto). Quando estava quase adormecendo ouviu barulho vindo da janela do quarto. Seu medo foi tamanho, que ficou paralisada: não conseguia se mover ou gritar pelo marido. Seu medo aumentou quando lembrou que a cama em que o filho pequeno dormia ficava logo abaixo da janela.

Ainda paralisada e apavorada percebeu a janela se mexer e viu que lentamente alguém a levantava. Em poucos minutos o ladrão estaria dentro do quarto e, pior que isso, poderia fazer o pequeno menino de refém. Os poucos segundos pareceram uma eternidade. Quando enfim a janela estava aberta, um homem negro, de cabelos levemente grisalhos enfiou a cabeça pela janela e olhou diretamente nos olhos de dona Lidia. Foi nesse instante que ela saiu daquele torpor e conseguiu gritar por socorro. Seu marido acordou assustado e veio correndo. Nisso o negro soltou a janela, que desceu com violência, quebrando todos os vidros, e sumiu no mato.

A polícia foi chamada e vasculhou todo o matagal sem encontrar qualquer indício do invasor. A janela mostrava os sinais de arrombamento e, felizmente, os cacos de vidro não causaram sequer um arranhão no pequeno menino que fora atingido pelos estilhaços.

Se tratando de uma vila pequena, o caso se tornou conhecido de todos os moradores. Todos comentavam sobre a casa no matagal, que expunha seus moradores aos mais diversos riscos. Diante da situação, os mandatários da RFFSA ficaram preocupados, pois se algo mais grave acontecesse, especialmente às crianças, eles poderiam ser responsabilizados. Trataram então de ceder uma nova moradia à dona Lidia e sua família, num local mais tranquilo e seguro de Paranapiacaba. A casa velha e úmida foi demolida. Ninguém mais sofreria nela.

A mudança foi feita. Na nova casa dona Lidia iniciou uma nova vida, mais tranquila e feliz.

Algum tempo depois visitou a cunhada e novamente foi convidada a “tomar um passe” com aquela mesma benzedeira, que de novo incorporou a doce figura de Pai João Benedito. Após breve conversa, o velhinho perguntou a dona Lidia:

_A fia está feliz na casa nova?

Ela respondeu que sim e começou a relatar o ocorrido, quando tentaram invadir a casa, porém foi interrompida pelo preto velho, que disse:

_Não precisa contar, não fia... eu sei o que aconteceu. Quem levantou aquela janela não foi um ladrão e nem alguém que queria fazer mal para você e sua família. Fui eu que estive lá. Com a confusão que causei os homens que mandam acharam melhor dar uma casa nova para a fia morar.

Dona Lidia ficou sem palavras, então o preto velho continuou, dizendo que a acompanharia e sempre que precisasse, para chamar pelo seu nome. Pediu também que ela não esquecesse de colocar um cafezinho para ele todos os dias. Assim ela fez até o último dia de sua vida.

O filho de dona Lidia, depois de adulto, iniciou-se na Umbanda. Aos poucos foi desenvolvendo sua mediunidade e recebendo suas entidades. Quando o seu preto velho se manifestou pela primeira vez, perguntaram seu nome, ao que prontamente ele respondeu:

Sou Pai João Benedito, um nêgo veio que trabalha humildemente na Umbanda. Acompanho esse cavalo desde que ele era um cabritinho. A mãe dele foi sempre grata e fiel a mim, nunca se esquecendo de me oferecer um cafezinho num cantinho discreto da sua casa. Agora eu vim para dar continuidade ao meu trabalho de caridade através desse menino, que eu conheço tão bem e que tantas vezes já orientei e protegi sem que ele nem percebesse.

Assim é a Umbanda: usa de meios que num primeiro momento não entendemos, usa métodos que até duvidamos, mas que sempre objetivam o nosso bem. Assim são os pretos velhos: trabalham discretamente, de maneira sábia e humilde, sem pedir nada em troca, no máximo um cafezinho, que serve mais para reavivar nossa fé do que para qualquer outra coisa. Assim são esses sábio trabalhadores. Jamais nos abandonam ou nos deixam sem respostas.

Salve a corrente africana.

Salve os pretos velhos.

Salve Pai João Benedito.

Adorei as almas.

PS: essa é uma história verdadeira.

Douglas Fersan.